sábado, 17 de março de 2007

Quem é rei nunca perde a majestade!

Fernando Bártholo
(Nº 000001/07)

Há muito, uma cena me acompanha pela vida afora: um galo branco, enorme, do meu tamanho, na porta da cozinha, reluzindo ao sol da manhã que se espelhava no vermelhão do cimento liso do chão.

Meus irmãos mais velhos o identificaram. Segundo dizem, atendia pela alcunha de Frederico. Era um legítimo Leghorn de Ancone, da espécie Gallus gallus. E manteve a fidalguia desse pedigree até a mocidade, pois com o passar do tempo, enfurnado naquele quintal da Colonha, perdeu as estribeiras diante da beleza das galinhas caipiras que por lá habitavam.

Quando já em idade capaz de compreender as nuances daquele “galinheiro”, passei a tê-lo como integrante do convívio familiar, diariamente presente, principalmente pelas manhãs a despertar com infalível regularidade, assim que o sol despontava seus primeiros raios.

Juntamente com outro galo, seu inseparável parceiro das noitadas, bem mais moço e de origem duvidosa, uma vez que descendia de uma “galinha qualquer da vida” e de pai incerto e não sabido, passavam, toda hora, bem debaixo da janela do meu quarto. Com certeza tinham alguma combinação, já que um me acordava e o outro não me deixava dormir de novo...

Conforme contam meus irmãos, o Frederico era tido como o rei do galinheiro. Absoluto senhor a não permitir a presença de outro naquele recinto. Valente. Toda vez que aparecia um galinho novo com raça de alguma procedência era aquela correria, confusão das brabas, o que fazia dar um fim no intruso, seja lá como fosse. Era assim com todos, menos com esse infeliz bastardo, que nem nome tinha.

Até que no começo eles se estranhavam um pouco, mas com o passar do tempo viram que ficar brigando por causa daquelas galinhas velha não valiam a pena tanto assim, chegaram a um acordo, até porque o Frederico, mais forte e mais bicudo, já estava mesmo meio enjoado, ficava o tempo todo ciscando pras franguinhas, as quais se achavam naquelas dúvidas de adolescente.
O mais novo, ainda empolgado com as lições aprendidas com as galinhas mais velhas, fazia-se de difícil pras franguinhas. Assim, depois de umas boas madrugadas enfurnados em boemia pelos cantos do quintal, chegaram a conclusão de que os interesses eram diferentes, não conflitantes e ficaram amigos.

Foi depois disso que ambos passaram a freqüentar o pedaço onde ficava a janela do meu quarto. Ali era, com certeza, o espaço reservado ao final de farra, tal qual botecos a servir aquelas canjas e caldos revigorantes depois dos bailes.
Reuniam-se ali e ficavam tagarelando, cada qual contando vantagem da sua noitada, de quantos ovos fariam as galinhas botar, ou de quantos poleiros pularam naquela noite. Certamente sempre terminavam ambos embriagados e abraçados, a entoar canções etílico-românticas, tipo “A volta do boêmio”...

Daí em diante, o sol nascia e iam curar a ressaca em algum canto mais escondido, silencioso e escuro do galinheiro.

Não brigavam. Mas quem, de vez em quando, quebrava o pau no galinheiro era a galinhona velha. Esta ainda apaixonada pelo Frederico, mas já sofrendo os efeitos da menopausa, em certos momentos não se continha e entrava em histérica crise de ciúme. Era por demais vê-lo arrastando asa para o lado das franguinhas.

Certa feita, em pleno meio dia, numa dessas crises, arrancou-o de sua costumeira sesta e pôs o coitado a correr em pleno galinheiro como se fantasma visse. O galão, por sua vez, já nem mais sabia em qual poleiro pular, pois a forma física, há muito comprometida pelas vadiagens noturnas, não lhe permitia os malabarismos de outrora. A saída era correr pela porta da cozinha adentro e alojar-se junto aos cestos e jacás cheios de tralhas. A galinhona histérica ficava a olhar com desconfiança a porta da cozinha, mas sabia que ali era perigoso. Vira muitas de suas amigas entrarem, mas nunca saírem. Era a porta da morte. Tinha medo. Entre o ciúme e o medo, ficava com o medo. Já o Frederico preferia a morte que suportar o mau humor e a sanha moralista das "filhas de Maria" do galinheiro.

Por ali ela ficava. Cacarejava por um bom tempo como a rogar praga de toda sorte ao infeliz.

Após amainar os ânimos, os demais galináceos, entre eles o galo mais novo, que a tudo assistiam como um bando de curiosos que se juntam para ver as confusões, retiravam-se aos seus afazeres. Em um minuto tudo voltava a normalidade. A galinhona velha voltava ao seu poleiro e o Frederico saia se arrumando, batendo o pó das penas.

Antes de se dirigir ao seu recanto, parava na soleira da porta da cozinha, estufava o peito, batia as asas e se punha a cantar de galo. Estava posto a ordem no galinheiro.

O sol se fazia alto e assim como a preguiça, a paz reinava absoluta naquele grotão.

(Fernando Bartholo - Gyn, 10/03/2007)

Para voltar à página principal: clicar aqui